Entrevista especial: Salvino Barbosa

“Sempre acreditei que o poder público era um lugar de transformação” foi uma das frases ditas por Salvino Barbosa ao se referir a sua trajetória. Ele, que cresceu e passou a vida inteira na Cidade de Deus, comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro, também dividiu sua infância e adolescência entre a favela e o Humaitá, mais precisamente o Colégio Pedro II, do qual ganhou uma bolsa. Foi durante esse período que Salvino percebeu a contradição entre os dois lugares. Hoje, ele é Secretário Especial de Juventude do Rio de Janeiro, o primeiro nessa vaga em específico e o mais jovem secretário da cidade.

Aos 13 anos, Salvino já trabalhava para ajudar a pagar as contas. Na Cidade de Deus, ele dividia a casa com mais 23 pessoas e passou por inúmeros trabalhos ao longo da vida. “Vendendo água no sinal, tomando conta de brinquedo de festa, garçom, estofador, camelô, enfim, onde tivesse dinheiro honesto eu estava me enfiando”, conta ele, que sempre quis trabalhar no setor público, não é à toa que fez Gestão Pública na UFRJ.

“Sempre acreditei que o setor público, a máquina pública era um lugar de transformação de realidades, porque um médico, claro, salva vidas, muda vidas, um advogado também, mas é o poder público que dá escala para essas coisas, que faz em grandes quantidades. Então eu sempre quis seguir esse caminho pra minha vida. E quando eu escolhi o que fazer na faculdade, eu decidi fazer gestão pública, porque era isso que eu acreditava”, explica o secretário. E, mesmo antes de assumir esse cargo, Salvino já trabalhava para ajudar quem veio das comunidades, assim como ele. 

Ele começou como professor no pré-vestibular comunitário “AfroEducando” na Cidade de Deus, logo depois se tornando coordenador. Logo após  ingressou na Defensoria e atuando no projeto  “Circuito de Favelas Por Direitos”. E, naquele mesmo ano, foi co-fundador de duas ONGs: o “Projeto Manivela”, que buscava facilitar o diálogo entre lideranças comunitárias e o poder público, como solicitar uma poda, criar um projeto de lei, enfim, tudo que envolve a máquina pública. E o “PerifaConnection”, que é uma plataforma de disputa de narrativa, que busca dar vez e voz para jovens de periferias.

Em 2020, quando começou a pandemia do COVID-19, a Cidade de Deus foi a primeira favela a registrar um caso. E preocupados com o que poderia estar por vir, Salvino e outras lideranças se uniram para diminuir os impactos da pandemia, estando a frente do coletivo “Frente CDD contra a COVID”. “ Lá nós levamos alimentos, informações e água para mais de 10 mil famílias no momento em que a sociedade mais precisava do governo. Foi a favela e a mobilização social que deram essa resposta. E, pela defensoria, eu coordenei a campanha de doações, que doou mais de 100 mil toneladas em toda a região metropolitana do estado do RJ”, completa. 

Nesse mesmo ano, Salvino conheceu o atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, “Eu fui atrás dele porque, como eu disse, eu queria seguir a carreira pública, então me apresentei, disse que era meu sonho, que queria ajudar e estar próximo, e ele me convidou para estar ao lado dele na campanha, onde falamos muito sobre juventude e favela” relata. E, quando Eduardo se torna prefeito pela terceira vez, convida Salvindo para ser o primeiro Secretário de Juventude do Rio de Janeiro. Ao contar sobre sua trajetória, ele aproveita para completar: “A minha vida é política, porque para o pobre resistir todos os dias é fazer política, então nós resistimos e conquistamos espaços”. 

Confira abaixo, na íntegra, o bate-papo com Salvino Barbosa:

 

  1. Como iniciou sua trajetória política? 

Eu sempre fui apaixonado por política, sempre me enxerguei na política, sempre quis trabalhar com política. Em especial pela minha trajetória de vida: eu sempre morei na Cidade de Deus, e a Cidade de Deus, durante muito tempo foi considerada a favela mais perigosa da Zona Oeste. Tive a sorte de ter sido sorteado para ir para o Colégio Pedro II muito jovem, então passei 14 anos da minha vida entre a favela mais famosa e considerada a mais perigosa do Rio e o bairro do Humaitá, onde ficava a minha unidade do Pedro II. E essa contradição sempre me gerou muita inquietude, em especial porque eu tive que começar a trabalhar muito jovem. Um jovem que morava numa casa com 23 pessoas e começou a trabalhar com 13 anos, vendendo água no sinal, tomando conta de brinquedo de festa, garçom, estofador, camelô, enfim, onde tivesse dinheiro honesto eu estava me enfiando. 

Sempre acreditei que o setor público, a máquina pública era um lugar de transformação de realidades, porque um médico, claro, salva vidas, muda vidas, um advogado também, mas é o poder público que dá escala para essas coisas, que faz em grandes quantidades. Então eu sempre quis seguir esse caminho pra minha vida. E quando eu escolhi o que fazer na faculdade, eu decidi fazer gestão pública, porque era isso que eu acreditava. Assim que eu entro na faculdade, eu decido devolver para a sociedade uma educação pública de muita qualidade (Pedro II e depois a UFRJ) e fui trabalhar de professor voluntário num pré-vestibular comunitário. Me tornei coordenador desse pré-vestibular, passei dois anos lá, muitas alegrias e muitas frustrações, mas muito mais alegrias de ver jovens de favela acessando o ensino superior. Depois fui co-fundador de duas ONGs: o Projeto Manivela, que eu buscava facilitar o diálogo entre lideranças comunitárias e o poder público, como solicitar uma poda, criar um projeto de lei, enfim, tudo que envolve a máquina pública. 

E o PerifaConection, que é uma plataforma de disputa de narrativa, que busca dar vez e voz para jovens de periferias. Hoje ele tem coluna no Jornal Meia Hora, na Folha de São Paulo, na Carta Capital, em diversos espaços que jovens de favela e periferias podem emitir sua opinião e ponto de vista sobre os principais acontecimentos no país. Esse trabalho foi bastante reconhecido e eu fui convidado para ser assessor de expansão da Defensoria, então eu ajudava a entrar dentro das comunidades, a levar o serviço para dentro das comunidades. E, no ano de 2020, quando inicia a pandemia de COVID-19, a Cidade de Deus foi a primeira favela a ter um caso de covid confirmado e as lideranças das favelas se uniram para dar uma resposta, e criaram a Frente CDD contra COVID. Lá nós levamos alimentos, informações e água para mais de 10 mil famílias no momento em que a sociedade mais precisava do governo. Foi a favela e a mobilização social que deram essa resposta. E, pela defensoria, eu coordenei a campanha de doações, que doou mais de 100 mil toneladas em toda a região metropolitana do estado do RJ. 

Nesse mesmo ano, eu acabo conhecendo o prefeito Eduardo Paes, eu fui atrás dele porque, como eu disse, eu queria seguir a carreira pública, então me apresentei, disse que era meu sonho, que queria ajudar e estar próximo, e ele me convidou para estar ao lado dele na campanha, onde falamos muito sobre juventude e favela. E quando ele vence e se torna prefeito pela terceira vez, ele me convida para ser Secretário de Juventude, o primeiro Secretário de Juventude da história do Rio de Janeiro e o secretário mais jovem também. Bom, essa é um pouco da minha trajetória política, a minha vida é política, porque pro pobre resistir todos os dias é fazer política, então nós resistimos e conquistamos espaços. Queremos construir uma cidade cada vez mais igualitária e menos desigual.

foto: Laryssa Lomenha
  1. Desistir alguma vez foi uma possibilidade? 

Desistir nunca foi uma possibilidade porque, na minha cabeça, eu nunca representei só o Salvino, sempre representei todas aquelas pessoas que acreditaram e confiaram em sonhar junto esse sonho. Então, desde os meus vizinhos que, muitas vezes pagaram a minha passagem, deram dinheiro para o lanche, até minha avó que veio do interior do nordeste, com filho na barriga, expulsa da sua cidade. Nunca foi e nunca será sobre o Salvino, mas sobre tudo o que ele pôde representar para as pessoas que estão ao redor dele e para todos aqueles que defendem o direito da juventude e do favelado, e que trabalharam tanto para que hoje a gente pudesse estar ocupando esses espaços. 

 

  1. Qual a maior dificuldade que enfrenta atualmente no seu cargo? 

Ainda há dificuldades muito grandes a serem vencidas, apesar dos avanços. A gente sente o peso, muitas vezes, de ser de origem humilde em reuniões, em espaços de decisões, em espaços de debates. Eu sinto o peso de ser uma liderança jovem e, muitas vezes, ter que impor o respeito, mesmo estando num cargo do alto escalão da política carioca. Mas a gente sabe que todas essas dificuldades refletem um pouco das dificuldades da sociedade, a gente sabe que a gente tem que lutar todos os dias para superá-las. Acho que esse talvez seja o grande desafio de lidar com as pessoas do dia-a-dia e com os estigmas ainda existentes sobre uma parcela tão grande da população, que é uma minoria social, mas é uma maioria em números absolutos. 

 

  1. Como é o seu contato com os jovens para entender as necessidades e receber os feedbacks das suas entregas? 

É muito direto pelas redes sociais e também no território, a gente está sempre rodando, circulando a cidade nos Espaços da Juventude, nos movimentos sociais, nos movimentos estudantis, nas comunidades, nas periferias. É um contato muito direto, muito sincero, que demanda muito tempo, esforço, mas eu trabalho com aquilo que eu amo, então isso nunca é um sacrifício. Eu ainda moro na Cidade de Deus, então, muitas vezes, as demandas dos jovens daqui da comunidade, elas vem num relato em primeira pessoa e acaba sendo um reflexo que também se repete em muitas outras comunidades, que eu faço questão de estar presente sempre que possível.

 

  1. Como foi receber a medalha Pedro Ernesto? 

A medalha Pedro Ernesto é a maior honraria da cidade do Rio de Janeiro e, para mim, é muito emocionante receber a medalha tão jovem. É o reconhecimento da cidade por um trabalho que apesar de jovem, vem sendo feito por mim e por tantas pessoas, eu fico muito feliz, me sinto muito honrado de receber da Câmara dos Vereadores, e preciso agradecer à vereadora Laura Carneiro pela sensibilidade, pelo carinho e por enxergar tanta potência e tanto trabalho no que a gente vem realizando, então é emocionante falar sobre isso. 

 

  1. Qual é a sua missão? 

A minha missão é o meu propósito de vida e um dia enquanto um jovem da Cidade de Deus, de uma família humilde, com poucas perspectivas de vida, muitas pessoas me ensinaram a sonhar. Professores do colégio, professores de projeto social, enfim, pessoas que me mostraram que o mundo é muito mais do que eu conhecia e que me apresentaram coisas que eu ainda não conhecia, aquilo transformou a minha vida e me mostrou que talento tem em cada cantinho da cidade, do planeta. Eu decidi dedicar a minha vida a que outros jovens pudessem sonhar, se descobrir e terem a oportunidade de serem aquilo que eles quiserem ser. Se eu pudesse dizer qual é minha missão em poucas palavras: É democratizar as oportunidades para cada jovem dessa cidade.

 

  1. O número de jovens conscientes do dever eleitoral cresceu expressivamente. Acredita que isso seja um trabalho importante? 

Certamente. O jovem hoje, na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, representa um a cada quatro cariocas, então é muito, muito importante que o jovem entenda seu papel enquanto cidadão, portador de direitos, mas também de deveres. E o nosso encontro com a Democracia, que acontece a cada dois anos, é um momento muito importante, onde a população chancela o modelo de sociedade que a gente quer viver, quem são aqueles que vão nos representar. Então o voto e, mais do que isso, o voto consciente da juventude, ele é muito bem vindo e extremamente importante para o processo da democracia, mas mais do que votar é acompanhar aqueles que são eleitos e até aqueles que não são eleitos, no seu trabalho, na sua representatividade e no seu empenho de tornar essa cidade cada dia menos desigual.

 

  1. Como é a caminhada de conscientização ao voto?

Esse é um processo que para muitos jovens ele acontece, infelizmente, muito tardiamente, que é entender que aquele voto não é só uma obrigação, um domingo desperdiçado, ele é de verdade em qual sociedade a gente quer viver, o que a gente quer enquanto sociedade. Os políticos nada mais são do que o reflexo da sociedade, então se a sociedade é intolerante, machista, racista, ou o que quer que seja, esse reflexo se dá no voto. Então é importante que a gente tenha consciência de quem estamos elegendo para nos representar e qual é o papel daquela pessoa enquanto representante da sociedade, o que a gente espera daquela pessoa. Mais do que isso, é importante entender que nenhum direito é absoluto, cada direito que nós temos na constituição é um direito fruto de muita luta, muita batalha de pessoas que vieram antes de nós. De mulheres que lutaram pelo direito de voto, de negros que lutaram pelo direito de serem seres humanos na nossa sociedade escravocrata. Então a consciência do voto vai muito além do que apertar alguns botões e um domingo, é saber que estamos garantindo ou não enquanto sociedade uma gama de direitos que estão ali na nossa Constituição, mas que não são absolutos, que eles são frutos de lutas coletivas e de uma conscientização coletiva num momento histórico muito importante. 

 

  1. Conte um pouco sobre os Espaços da Juventude:

Os espaços da juventude foram pensados para serem verdadeiros oásis para a juventude carioca, porque são equipamentos de 40m2 voltados essencialmente para a capacitação no campo tecnológico, como operador de drone, operador de impressora 3D, design de games, entre outros. Equipamentos de alta tecnologia que podem e conseguem capacitar até 250 jovens por mês, num mercado que tem uma defasagem de mão de obra qualificada. A gente quer com essa rede de equipamentos que está sendo construída que os jovens possam, primeiro, ajudar a ocupar essas vagas ociosas e, assim, ajudar a cidade a crescer, mas também voltarem a sonhar, voltarem a ter perspectivas e terem um espaço para chamarem o seu.

 

  1. Os retornos têm sido positivos? Pensa em crescer o projeto?

Os retornos têm sido excelentes. A gente tem histórias incríveis de jovens que passaram pelos nossos cursos e capacitações e tiveram suas vidas transformadas. Na própria equipe da Secretaria de Juventude, hoje, nós já temos ex-alunos, que passaram pelas nossas capacitações, se tornaram excelentes profissionais e que nós fizemos questão que eles viessem trabalhar com a gente. É muito desafiador, mas  o cenário é extremamente animador. 

 

  1. Recentemente rolou o Epicentro Festival que foi um sucesso! Pode nos contar os bastidores de criação, idealização e proposta do evento? 

Festival Epicentro é o coroamento de um trabalho que acontece em Madureira, já há alguns meses, com patrocínio da Secretaria de Juventude. O Duto, que é uma instituição que atua há muitos anos na região de Madureira, fomentando a qualificação profissional dos jovens da região, conectando eles e trazendo identidade junto ao bairro. Um movimento que constrói pontes com vendedores daquela região, com  empresários daquela região, com jovens daquela região. O Festival foi o momento em que todos puderam mostrar ali os meses de aprendizado e puderam se unir para criar um movimento cultural belíssimo em Madureira, que é mais do que resistir com a cultura popular, é propor e avançar com a cultura popular. Então, foram quatro palcos espalhados por Madureira com diversos ritmos e com diversas atrações que envolveram pelo menos 3 mil jovens naquela região, naquela noite. Então, deu muito trabalho, mas foi um movimento incrível, tocado em parceria com o DUTO, que é idealizador do Epicentro. 

 

  1. Por que Madureira foi escolhida para ser palco desse grande evento?

Madureira foi escolhida porque é um dos grandes centros de cultura da cidade do Rio de Janeiro, um ponto de encontro da juventude carioca, seja no Parque Madureira, seja nas rodas de samba. Madureira pulsa muita vida e cultura e ainda precisa do apoio do poder público para que as coisas naquela região cresçam e floresçam cada vez mais. Então, a aposta de Madureira foi pensando com o olhar descentralizado e enxergando as potências da Zona Norte do Rio de Janeiro. 

 

  1. Lidar com jovens é mais trabalhoso? (Por trabalhar com sonhos, prospecção, formação de personalidades)

Pelo contrário, acho que lidar com jovens é mais fácil. O jovem é muita potência, muita energia. Ele quer sempre questionar, ele quer sempre saber mais. Isso é uma injeção de ânimo para qualquer pessoa. Você pensa que vai ensinar algo pra esse jovem e de repente tá aprendendo muita coisa e tudo muito rápido. Então, é prazeroso demais trabalhar com a juventude. É um aprendizado todos os dias e de um crescimento incrível. A juventude do Rio de Janeiro é o maior barato.

 

Foto: Larissa Lomenha
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